quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Discurso para recordar - João Bénard da Costa 10 Junho 2007



Setúbal por João Bénard da Costa

Excerto do discurso de 10 de Junho:

Trinta anos depois do início das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, sob o figurino de que actualmente se revestem, chega, finalmente, a hora e a vez de Setúbal ser palco delas. Se outras justiças não houvesse – e delas falarei mais adiante – justiça poética se cumpriria, pois que o maior poeta desta cidade – a sua figura permanentemente mais celebrada, pelo menos desde que António Feliciano de Castilho lhe promoveu, em 1865, as comemorações do centenário do nascimento – foi o primeiro ou dos primeiros a invocar em verso Camões: "Camões, grande Camões, quão semelhante / Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! / Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, / Arrostar c'o sacrílego gigante".

Bocage, pois que é dele que falo, não devia imaginar que, com esse célebre soneto em que de Camões disse: "Modelo meu tu és…", estava a inaugurar uma infindável série de poemas em louvor do Poeta de quem celebramos hoje o dia. Pois foi pela voz dele e da geração dele que se estabeleceu – cerca de duzentos anos depois da morte de Camões – a equívoca unanimidade que o proclamou e proclama o luso "Príncipe dos Poetas". Apesar dos que se precipitaram no século XVII para lhe roubar tudo: "as ideias, as palavras, as imagens / e também as metáforas, os temas, os motivos, / os símbolos, e a primazia / nas dores sofridas de uma língua nova" (estou a citar outro poeta nosso maior, Jorge de Sena, e o admirável poema "Camões dirige-se aos seus contemporâneos") a critica dominante no século XVIII ou esqueceu o poeta, ou verrinosamente o atacou, não reconhecendo essa língua nova. Foram os pré-românticos, como Bocage, ou, depois, os românticos, como Garrett, quem o recuperou, até na imagem mítica que o século XIX tanto alardeou.

Falei de "equivoca unanimidade". A expressão aplica-se por igual a Bocage, tantas vezes saudado como o nosso maior poeta depois de Camões. Mas se lhes demos – a um e a outro – tal assento etéreo, pouco mais lhes demos. Já um dia, num destes discursos, me perguntei e vos perguntei: onde estão as edições criticas de Camões? Para que parte da sua obra se fez fixação do texto? Que sabemos ao certo sobre a sua vida? Com quanta razão disse Sena – cito-o nova e gostamente – "que em matéria de Camões é um perigo dizer seja o que for"?

E em matéria de Bocage? Conhecem-se as anedotas, alguns poemas eróticos e é com lembrança delas e deles que encobrimos quase sempre com um sorriso cúmplice (ou malandreco ou pudibundo) as referências ao seu nome. Saberão alguns que, perto da morte, Bocage já se não comparava a Camões, mas a Aretino, o grande poeta renascentista italiano, cuja reputação libidinosa atravessou os séculos. Mas se ao menos Bocage tivesse sido estudado como Aretino o foi! Aquele que chamou aos prazeres seus sócios e seus tiranos, numa analogia deveras singular, não desapareceu "desfeito em vento", numa "cova escura", como profetizou, mas dissolveu-se na nossa ignorância, no contumaz desconhecimento ou desfiguração do nosso património e na insólita relação com a memória que aos portugueses mais parece faltar do que qualquer outro atributo, ou de que os portugueses menos curam do que de qualquer outro atributo.

Justiça poética, disse eu que se fazia ao comemorar o Dia de Camões na cidade de Bocage. E já nem falo no esquecidíssimo Vasco Mousinho de Quevedo, que Faria de Sousa também considerou, no século XVII, "o maior depois de Camões" e de quem se ignoram mesmo as datas de nascimento e morte. Lá o figuraram, no século XIX, aos pés de Camões, na estátua do Chiado, mas não conheço ninguém que tenha lido o seu Afonso Africano, à glória do rei que, sob a luz brilhante aqui de Túbal, partiu em 1458 à conquista de Alcácer Seguer. E estou a citar, mais uma vez, Bocage e o soneto que começa: "Apenas vi do dia a luz brilhante / Lá de Túbal no empório celebrado"

Mas outras justiças há, mais ou menos poéticas, de que importa falar nesta cidade de sol e de sal, que é também – convém usar e abusar de poetas neste dia – meu remorso, meu remorso de todos nós.

Se tem sido inúmeros os cantores das belezas naturais que a cercam (a Arrábida, Palmela, o Outão) em que Andersen, o dinamarquês dos contos e das maravilhas, dizia, da Quinta das Machadas dos O'Neill em que se hospedou em Portugal, ter encontrado o paraíso terreal, permanece, sobre tais arrobos, a seca síntese de Raul Proença ao escrever que esta "maravilha do décor, da moldura, fazem esquecer o pouco interesse que em si apresenta a cidade – que é um bairro antigo de Lisboa, entre laranjeiras, com o mesmo aspecto das casas, as mesmas ruas estreitas da Mouraria ou do Bairro Alto, e com uma ou outra praçazinha solitária e cheia de sol".

É certo que a cidade, apesar do vestidão dos seus horizontes, sempre se abrigou deles e é certo que é uma das cidades mais secretas de Portugal, no seu aparente enscancaramento. É certo que traços mais primitivos foram abatidos – ainda mais do que em Lisboa – por tremores de terra que parcialmente a destruíram em 1531, 1755 e 1858. É certo que não foi poupada nem pela invasão espanhola de 1580, nem pelos Filipes que não lhe perdoaram o apoio dado ao Prior do Crato, nem pelas invasões francesas, nem pelas guerras civis dos inícios do século XIX. É certo que não podemos imaginar o seu esplendor, quando o Sado chegava onde hoje fica a Avenida Luísa Todi, e holandeses acorreram à cidade em busca do mais precioso dos seus produtos: esse sal, dito o de mais puros cristais da Europa, que serviu de moeda de troca para um acordo com a Holanda, visando a recuperação das colónias de Africa, América e do que restava do Oriente. Sabe-se que, apenas em dez anos, entre 1680 e 1690, saíram de Setúbal 7500 navios carregados de sal para os Países Baixos.

"Toda a terra é retalhada do mar, com que juntamente vem a ser mar e terra, e os homens, a que podemos chamar marinhos e terrestres, tanto vivem em um elemento como no outro. As ruas por uma parte se andam e por outra se navegam, e tanto aparecem sobre os telhados os mastros e as bandeiras, como entre os mastros e as bandeiras, as torres (…). Em muitas partes toma o navio porto à porta do seu dono, amarrando-se a ela e deste modo vem a casa a ser a âncora do navio e o navio a metade da casa, de que igualmente usam".

O Padre António Vieira, que tanto usou o sal como metáfora – e, apesar de estar na cidade dele, me guardo prudentemente de citar o Sermão de Santo António aos Peixes ou o que sucede quando o sal não salga e a terra não se deixa salgar – descreveu da maneira que citei Amsterdam, em alusão aos holandeses, ou Setúbal, que ele bem conhecia e onde os holandeses tinham reencontrado uma cidade que, nas mesmas condições, reproduzia o mesmo aspecto? Duvida-se? Pois percorram a cidade velha com atenção (a atenção que não é costume dedicar-lhe) e ainda são várias as casas que, não fora o recurso aos diferentes materiais e métodos de construção, se podem confundir com casas de Amsterdam.~

Cidade secreta, disse eu. Secreta é-o no nascimento como cidade – dela não falam os nossos primeiros cronistas; secreta é a sua evolução entre o foral de D. Afonso II (1249), a lenda da Senhora da Água ou da Senhora Pequenina, a fundação da Casa do Corpo Santo (1340) e a construção das muralhas da vila, ao tempo de D. Afonso IV, para as quais o povo desta cidade se colectou com a primeira siza que houve em Portugal.

Mas só no século XV, Setúbal se tornou uma cidade que conta, com a casa Cabedo e o casamento de D. João II com D. Leonor de Lencastre, sua prima direita. Porque escolheu o Príncipe Perfeito Setúbal como cidade da sua predilecção? Como o seu pai o deixara "rei das estradas", para usar expressão do próprio, tantas as benesses que D. Afonso V dera às grandes casas nobres, para destruir esse poder que o ameaçava, nada melhor do que Setúbal que nenhuma grande família escolhera para residência.

E foi em Setúbal que aconteceu a "noite de muito grande terror e espanto", como Garcia de Resende se refere à noite de 23 de Agosto de 1484, em que D. João II assassinou por suas próprias mãos o primo e cunhado, o Duque de Viseu, e depois mandou chamar o irmão mais novo daquele, o futuro Rei D. Manuel, para que lhe beijasse a mão real junto ao cadáver do outro irmão da própria mulher.

Mas foi esse mesmo D. Manuel quem veio a dar a Setúbal, por foral de 1514, o título de Notável Vila, enquanto nela mandou edificar o seu mais célebre monumento: O Convento de Jesus.

O sangue também se lava com o sal. Nos séculos seguintes os iates do sal, como assim mesmo eram chamados, transportavam das marinhas para o centro da cidade a sua principal riqueza. Se o século XVIII é o século de Bocage, e de Luísa Todi, esses e outros vultos não nasceram na cidade por acaso, mas reflectem tanto uma riqueza comercial que atraíu à cidade banqueiros de Hamburgo (os Torlades) como nela fomentou a criação de academias, como essa chamada adequadamente Problemática, numa cidade que o foi e o continua a ser.

Mas Setúbal manteve-se cidade secreta, mesmo em épocas mais recentes. Talvez seja das cidades de Portugal a que tem mais para contar e da qual menos se conta.

Por isso, hoje, tão demoradamente me centrei nela. Este, como ser o dia do Poeta, é o dia das memórias e as memórias valem tanto mais quanto mais esquecidas se tornam. Nesta cidade, que viveu de conservantes, de conservas e de conservações, só a memória se não conservou. Salvaguardar o futuro? Mas o futuro só se salvaguarda quando se restituiu ao tempo o que cada tempo a seu tempo trouxe, verdade elementar mas verdade de que tão pouco curámos e curamos.


Excerto do Discurso do Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do Dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas, Dr. João Bénard da Costa

Setúbal, 10 de Junho de 2007


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